Duas coisas que os discursos não falam sobre o discurso

Por Lúcio Nassaro

in memoriam Oswaldo Porchat

Há uma luta comunicativa entre as espécies

Em artigo publicado por esta Revista Estratégia, fomos contra o senso comum que vê na natureza apenas a lei da selva, a “lei da força” e que não nota nesta mesma natureza a ação do poder da comunicação. Pontuamos que o mimetismo, uma mensagem em geral visual como faz o camaleão para se defender, também é usado pelos mais fortes para atacar, como a pelagem das onças, e que muitos outros fenômenos recentemente descobertos estão agora sendo reunidos pela ciência como fenômenos de “comunicação animal”. Entre estes, alguns mais sofisticados que permitem inclusive que o animal mais fraco individualmente desafie o mais forte, como quando uma malta de lobos surpreende um grande touro distante da manada.

Para criacionistas e outros incomodados com a fragilização da separação mística ou mágica entre o homem e os animais, estas caças coletivas eram simplesmente descartadas com o carimbo de “comportamento inato”. No entanto, a ciência começa a ver nas caças exercidas por grupos de animais da mesma espécie, como aquela dos lobos, uma complexa troca de mensagens em vários canais. Surpreendentemente, até no nível dos microorganismos, como a ciência descobriu nos anos 2000, bactérias sincronizam seu ataque monitorando sua densidade populacional através de trocas de moléculas que têm exclusivamente a funcionalidade de comunicar (em latim e inglês quorum censing).

Recentemente, o engenheiro florestal Peter Wohlleben tornou-se best seller ao descrever como os imensos e antiquíssimos seres vegetais que chamamos de “árvores” coordenam, através de lento envio e recepção de mensagens químicas, a resistência conjunta a predadores e ondas infecciosas (A vida secreta das árvores, 2017). Acrescente a isto, como nos informa o paleoantropólogo Curtis W. Marean, que espécies humanas do mesmo gênero Homo, caçando com estratégias possibilitadas por um tipo arcaico de fala, extinguiram já na África seus próprios predadores e que o Sapiens, saindo da África posteriormente, extinguiu grandes mamíferos na Austrália e por último nas Américas tais como mastodontes e prequiças-gigantes (revista Scientific American Brasil, setembro de 2015). 

Não param as novas publicações que mostram que a natureza usa da comunicação, não apenas no sentido metafórico popular ou pseudocientífico como um sutil, no entanto mecânico fluxo de substâncias reagindo entre si através dos seres vivos, mas em sentido literal como pela primeira vez foi formulado por Aristóteles em seu livro Retórica, que dividiu a comunicação nas clássicas três partes ainda estudas deste modo nas nossas faculdades: emissor (codificador), mensagem (codificada) e receptor (decodificador).

É digno de nota que há não muito tempo, como explica o primatologista e etologista Frans de Waal, o estudo do comportamento animal era dominado por behavioristas, quase todos norte-americanos pavlovinianos, que pesquisavam como os animais podem aprender sob condições controladas de laboratório. Nesta abordagem, apenas em um sentido muito estreito permitia-se que os animais mostrassem suas capacidades. Já a moderna Etologia fundada por Nikolaas Tinbergen, Konrad Lorenz e Karl von Frisch se interessa por todo comportamento natural. Estes três dividiram em 1973 o Prêmio Nobel em fisiologia e medicina por suas descobertas concernentes à organização e padrões de respostas comportamentais de indivíduos e grupos animais como adaptação evolutiva, o que envolve claros fenômenos de comunicação no sentido clássico aristotélico (Entrevista em 11 de julho de 2011 ao site em inglês da Scientific American na internet, acesso em dezembro de 2017).

De fato, como deixa claro o arqueólogo cognitivo Steven Mithen, a comunicação é invenção da própria natureza, é um recurso adaptativo das espécies e este novo quadro passa a exigir que mesmo o cérebro humano seja descrito, não mais como uma máquina biológica que excepcionalmente evoluiu para pensar ou meditar, mas como uma máquina para comunicar com eficácia em uma luta constante pela sobrevivência. É especificamente seu alto desempenho na coordenação de indivíduos para o ataque e defesa que compensa seu grande consumo calórico e que colocou lentamente espécies integrantes do gênero Homo, como o Homo
Habilis, Erectus, Heidelbergensis, Neanderthalensis, Sapiens etc. no topo da pirâmide alimentar extinguindo muitas outras. 

É neste quadro que entre 100 e 70 mil anos aconteceu o grande salto evolutivo na comunicação dos Sapiens e que é chamado ainda com viés intelectualista de Revolução Cognitiva. Esta alteração, que parece abrupta porque ainda não temos resquícios de suas etapas, deu aos Sapiens a decisiva adaptação evolutiva de poder operar metáforas complexas. Isto significou a capacidade de comunicar muito mais e melhor para o estabelecimento de alianças individuais, resolução de conflitos, união e coordenação de esforços coletivos em grandes grupos de Sapiens que os levou, provavelmente, a extinguir as outras espécies humanas do seu mesmo gênero Homo, tais como os Neandertais e Denisovans (A pré-história da mente – Uma busca das origens da arte, da religião e da ciência, 2002).

Há uma luta comunicativa entre os homens

A luta comunicativa dentro da mesma espécie é obviamente mais difícil de ser observada que as lutas físicas. A sutileza do uso competitivo da comunicação dentro da mesma espécie é bem exemplificada por uma recente hipótese, chamada de princípio handicap, que vem ganhando adesões por resolver um enigma apresentado por algumas formas de vida: por exemplo, maior o tamanho da calda do pavão, maior suas chances de ser preferido pelas fêmeas; o enigma a ser resolvido é que quanto maior a calda, menor a capacidade de fugir de predadores, o que contraria aparentemente o evolucionismo. Contudo, a nova hipótese justamente afirma que as fêmeas intuem acertadamente que um pretendente, por sobreviver até idade adulta com uma calda grande, possui constituição física e habilidades superiores àqueles que apenas sobrevivem porque têm calda pequena.

Esta e outras hipóteses recentes alertam os pesquisadores sobre como é complexa a relação entre força e comunicação nas disputas entre indivíduos da mesma espécie. Este novo quadro jogou suspeitas sobre a opinião política comum de que o Sapiens individualmente mais forte simplesmente se impõe ao Sapiens mais fraco. Por exemplo, agora há menos segurança sobre a origem do dimorfismo sexual, a grande diferença de corpos de homens e mulheres: esta pode ser resultado, não apenas de lutas individuais entre pretendentes masculinos, mas de opções feitas pelas mulheres que escolheram os maiores e mais simétricos e/ou mais prestigiados na comunidade, virtudes que dependem completamente de comunicação na sua forma inata (aparência), mas também voluntária (comportamento comunicativo somado à boa aparência). 

O tema é complexo e se presta a algumas apropriações apressadas por parte de literatura sensacionalista que pratica algo como uma psicologia evolutiva popular (em inglês EP pop ou Pop EP), mas nas últimas décadas se avolumam as pesquisas e os recenseamentos de pesquisas teóricas, laboratoriais e de campo dedicadas a observar e compreender especificamente o comportamento de primatas e suas comunidades, estudos fundamentais para novas intuições sobre o que define o próprio Sapiens. Entre os grandes centros mundiais de primatologia, a referência mundial continua sendo o Instituto Max Planck para Primatologia Evolutiva (Max-Planck-Institut für evolutionäre Anthropologie ou abreviadamente MPI EVA) em Leipzig, na Alemanha, que mantém centenas de pesquisas com especialistas multinacionais e multidisciplinares.

O interesse da área está longe de mobilizar apenas um segmento acadêmico, pois é de importância crucial para a reflexão política e para as ciências da administração e econômicas – para estas duas trata-se do melhor uso de recursos humanos e financeiros – impactando assim os governos, partidos, terceiro setor e organizações empresariais todas, afinal busca-se evidências seguras que nos permitam saber se a opção por sistemas democráticos e participativos enfrenta uma natureza humana individualista, autoritária e violenta ou se é favorecida por uma disposição natural igualitária, solidária e comunicativa. As duas possibilidades extremas possuem defensores já desde o período heroico do surgimento do evolucionismo no século XIX contrapondo os conceitos de individualismo versus altruísmo naturais.

O próprio Charles Darwin no livro A descendência do Homem (The descent of man, and selection in relation to sex,1871) propôs que o altruísmo, mesmo que desvantajoso para o indivíduo altruísta, torna o grupo a que pertence mais competitivo no processo de seleção natural com outros grupos (group selection). Somaram-se a esta linha, a obra pioneira do zoólogo e anarquista Peter Kropotkin e nas últimas décadas o livro O Macaco Nu (The naked Ape,1967) do etologista Desmond Morris, o livro Animal Thinking, 1985, do zoólogo Donald Griffin, os livros Peacemaking among Primates, 1989, Chimpazee Politics, Power and Sex among Apes, 2007, The Age of Empathy: Nature’s lessons for a kinder Society, 2009, escritos por Frans de Waal e os dois livros Why we Cooperate de 2009 e A Natural History of Human Morality de 2016 do codiretor do MPI EVA Michael Tomasello.

Nos anos 70, o biólogo Richard Dawkins, com o livro O Gene Egoísta (The Selfish Gene, 1976), posicionou-se contrariamente a esta noção de que a seleção natural opera também na competição entre grupos e insistiu na interpretação estrita de um evolucionismo centrado na seleção natural operante apenas no nível dos indivíduos. Segundo Frans de Waal, na entrevista que citamos acima, esta hipótese evolucionista estrita já era propugnada por Thomas Henry Huxley e sua visão darwinista radical de uma natureza como campo de combate onde o mais forte vence e tudo é decidido pelo interesse individual.

Esta conceituação estrita tornou-se a base do pensamento político de Herbert Spencer, adotado por conservadores que propõe que a sociedade deve ser organizada com base na pura competição, assim como funcionaria a própria natureza. Esta linha argumentativa, chamada de Darwinismo Social, ainda hoje pode ser detectada no cerne da política econômica liberal contemporânea para a qual o Estado deve ser mínimo, porque a seleção natural deve operar sem atenuações sobre os perdedores no capitalismo moderno para supostamente beneficiar a economia do país como um todo, afinal o homem seria, segundo estes liberais, essencialmente um macaco assassino (killer-ape), imagem celebrizada pela cena de abertura de Odisséia 2001 de Stanley Kubrick de 1969. Esta posição teórica é claramente conveniente para aqueles que querem justificar seus privilégios econômicos sem afirmar, como fez expressamente Cálicles, o personagem aristocrático favorável à oligarquia no diálogo Górgias de Platão já no século IV a.C., que a justiça é o interesse, a vantagem do mais forte.

Contudo, pesquisas recentes parecem novamente dar razão às intuições iniciais de Darwin e dos defensores da realidade do altruísmo natural adaptativo. Um famoso estudo do antropólogo e psicólogo evolutivo Robin Dunbar, mostrou que em várias espécies seus membros praticam o comportamento de catação (em inglês, grooming) com o qual estes longamente afagam e retiram parasitas e sujeira dos pelos de outro membro do grupo. Este comportamento, especialmente entre primatas, seria o principal solucionador de conflitos e aglutinador social ao estabelecer vínculos e alianças de mútuo apoio e defesa entre aqueles que trocam este serviço (Steven Mithen, 2002).

Já o antropólogo e arqueólogo Robert Foley (Os Humanos antes dos Humanos – Uma perspectiva evolucionista da Humanidade, 2003) dá relevo à correlação, evidenciada pelo mesmo Robin Dunbar em 1992, entre o tamanho do neocórtex e o número médio máximo de indivíduos primatas que conseguem viver juntos em uma comunidade estável. Esta relação, levando em conta o tamanho médio do neocórtex humano, aponta para o número aproximado de 150 integrantes (conhecido como Número de Dunbar). Este seria o número máximo de relacionamentos estáveis que o Sapiens consegue manter, saber quem são outros e saber como cada um se relaciona com os outros. Foi este o número também encontrado em análise de povoados do Neolítico e na história militar em que grupos acima de 150 são subdivididos. Esta e outras pesquisas vêm apoiando a ideia mais vigorosamente formulada primeiramente por Nicholas Humphrey na década de 70 que substitui a hipótese do cérebro como órgão útil para a busca de alimentos pela hipótese do cérebro social (Social Brain Hypothesis), hoje mais consensual entre os especialistas.

Assim, o estado da arte aponta para evidências de que a violência entre primatas, conceito que inclui o Sapiens, é acompanhada, atenuada ou mesmo substituída pela formação cuidadosa de alianças políticas através de processos comunicativos melhor compreendidos a cada nova pesquisa. Também sinaliza que é a precedência da comunicação em relação à força física individual – a função social do cérebro – que levou o Sapiens a adquirir a inusitada relação entre massa encefálica e peso corporal médios e mantem estáveis seus grupos e os permite sobreporem-se às outras espécies e a outros grupos de Sapiens (Steven Mithen, 2002). Entre estes, a eficácia dos acordos de mútuo apoio, defesa e formação de alianças ainda alcançaria o grau máximo entre todas as espécies, pois, se inicialmente os Sapiens formavam pequenos grupos empregando o grooming e formas arcaicas de fala, posteriormente ao Salto Cognitivo, que potencializou sua compreensão e expressão verbal, passaram a formar grupos maiores e mais funcionais, como propõe especificamente outra obra de Dunbar (Grooming, Gossip and the Evolution of Language, 1997).

Contudo, especialmente depois de duas guerras mundiais e do holocausto, permanece a longa tensão entre as correntes do individualismo versus altruísmo natural e a dificuldade em resolver o enigma que aumenta com evidências científicas que seguem sendo reunidas por uma e outra posição. Trata-se também, como alertamos, de uma questão política que opõe hoje, simplificadamente, democratas ricos a democratas pobres – e talvez aqui a história recente da filosofia e da retórica possa colaborar para que cada um dos dois partidos, conhecendo-se melhor a si mesmo e vendo a si mesmo no outro, possam encontrar soluções políticas sustentáveis a longo prazo. 

Em efeito, diante das correntes que buscam se apoiar em um individualismo ou altruísmo naturais, supostamente excludentes entre si, temos a ocasião de aprendermos com o professor Werner Stegmaier (As linhas fundamentais do Pensamento de Nietzsche, 2013) que dá relevo a uma importante reflexão de Friedrich Nietzsche, pensador que no século XIX subverteu a tradição de toda a filosofia posterior a Platão ao ser capaz de extrair as mais profundas consequências do darwinismo para o próprio pensamento: nossos conceitos são abstrações artificiosas e precárias que buscam apreender a realidade, mas que também limitam esta apreensão; os conceitos são fixos, assim como as oposições de conceitos, e a realidade que tentam descrever e capturar é fluida, heterogênea e contínua; os conceitos são generalizações de vários casos e nunca dão conta do particular, eles são apenas instrumentos provisórios de uma vontade. Lembrando desta lição de Nietzsche, criamos a possibilidade de superar a polarização das duas posições evolucionistas acima para talvez notar que, paradoxalmente ao menos no caso do Sapiens, que o individualismo exija o altruísmo e que o altruísmo, seja uma forma de individualismo. 

Pois é preciso considerar que as pesquisas também mostram que o primata que resolve conflitos e estabelece alianças individuais através de atos altruístas como o grooming compete com outros que fazem o mesmo em uma franca disputa por apoiadores e alianças mais amplas; é isto que se observa na natureza (vamos reter aqui apenas uma primeira premissa: o altruísmo, não impede a competição). Do mesmo modo, no entanto, é preciso ver que os atos de altruísmo, mesmo que favorecidos por uma disposição genética para a empatia, envolvem maior voluntarismo no caso complexo do Sapiens e devem ser vistos sem considerações morais e apenas fenomenologicamente como realmente se apresentam: os atos altruísticos em geral são testemunhados, avaliados socialmente e provocam aprovação e aceitação, ou seja, atos altruístas são materialmente fenômenos da comunicação e que produzem efeitos comunicativos. Assim, o chimpanzé que troca grooming com os parceiros certos ou o Sapiens empático que cumpre bem suas tarefas coletivas, não seriam apenas altruístas, mas fundamentalmente excelentes comunicadores (segunda premissa: o altruísmo é uma comunicação).

As evidências da competição extra e intra-espécie são inegáveis e constantes; a competição é o próprio motor do processo evolutivo atestado por toda a natureza e o homem não é a única exceção (terceira premissa: os Sapiens competem entre si). Ora, destas três premissas decorre uma conclusão que desafia o senso comum: o que chamamos de altruísmo entre os homens, a colaboração, o diálogo e esforços pessoais pelo coletivo, são fenômenos da comunicação operada com um máximo de eficácia pelos Sapiens dentro de um amplo quadro natural de disputas comunicativas. Esta conclusão teria um corolário paradoxal, mas consequente: competimos altruisticamente e somos altruístas de maneira competitiva. Então, atrás da conduta altruísta e sob as muitas camadas de discursos, com os quais todas as culturas e subculturas – mesmo as subculturas de marginais – exaltam o altruísmo entre seus membros, haveria um esforço competitivo individual que usa de comunicação, o que é coerente com o amplo quadro natural de luta comunicativa.

O caso dos Sapiens seria o mais complexo, pois entre nós a competição vai do puro uso da força para extermínio do inimigo, passando por infindáveis combinações de uso da força e da comunicação a cada relação e tempo, até a prática competitiva pacífica, exclusivamente comunicativa, na sua forma mais eficaz: o altruísmo na convivência com o igual. Mas este é só o ponto de vista do forte; a complexidade dobra, pois do lado do fraco há outro gradiente que se estende desde a sujeição completa e silenciosa, passando pelo servilismo acomodado e simbiótico racionalizado pela comunicação, a resistência secreta e sabotadora em comunicação com outros fracos para a eliminação do opressor desigual até o uso competitivo da comunicação através do altruísmo entre iguais.

Assim, desde que o personagem Cálicles reivindicou no livro Górgias (488b–d) que a justiça existe segundo a natureza e que é justo que o mais forte seja o superior e melhor e tire os bens dos mais fracos, não estaríamos hoje, com a ciência, desvendando enfim completamente a malícia que se encontrava sob a inesquecível pergunta que Sócrates lhe devolve: “Não seria conforme à natureza que uma massa de indivíduos seja superior a um só indivíduo?”. Afinal, para a primatologia de hoje, Sócrates tem razão contra Cálicles, não por causa de sua doutrina filosófica, mas porque em meio ambiente altamente comunicativo constituído por Sapiens o mais forte não é aquele que possui individualmente mais força, mas quem consegue reunir maior número de apoiadores em torno de si. Deste novo ponto de vista, na Atenas democrática em que resumidamente várias revoltas da classe média instauraram a igualdade diante da lei entre seus integrantes e aqueles da oligarquia, o real partido de Sócrates, contra todo senso comum não é o partido dos fracos, justos e inocentes, o partido dos que têm razão, o partido daqueles filosoficamente melhor fundamentados, mas é o partido dos fortes, o partido dos mais numerosos!

Entretanto, há uma segunda malícia neste Sócrates que apenas Nietzsche foi capaz de desmascarar no livro O Crepúsculo dos Deuses. Usando de imagens ofuscantes, que atordoam pelo seu fulgor o leitor desprevenido, Nietzsche foi o primeiro capaz de falar pelos Sofistas e mestres retóricos de aristocratas como o personagem Cálicles; Nietzsche vingou estes professores de oratória, descredenciados pela filosofia socrático-platônica e pela religião nos seguintes dois mil anos de literatura ocidental ao contrapor um discurso superior ao poderoso discurso socrático porque, enfim, explica como este opera para obter a maioria das adesões e se impor politicamente.

Nietzsche acusa Sócrates de ter causado um mal-entendido em toda a cultura européia, de ter persuadido a todos a trocarem a vida real por ideias que são como novos ídolos para serem adorados desprezando a realidade trazida pelos sentidos e acusando a vida de ser um mundo de aparências. Nietzsche acusa Sócrates de ser um fraco, feio, doente consciente de sua decadência que, convulsionado em seus instintos naturais, põe todo seu rancor e ódio contra os fortes e a vida que os beneficia, entregando-se às alucinações e ao uso compulsivo da lógica, da dialética, de silogismos e toda sorte de armadilhas verbais para absurdamente pretender avaliar a vida. Nietzsche acusa Sócrates de depreciá-la, de difamá-la, aviltá-la tornando-se o inimigo da pulsação da vontade, do desejo individual, então simplesmente porque não tem na vida o poder de satisfazê-los, saciá-los. Nietzsche acusa Sócrates afinal de ser um demagogo e tramar um insidioso discurso de escravo que satisfaça e reúna em torno de si outros escravos rancorosos como ele para eliminarem os poucos felizes e afortunados que celebram a vida como a vida é: desigual.

Em imagens com menos brilho que jamais Nietzsche usaria: a formação de uma maioria, a hegemonia, a vitória política em uma desesperante luta comunicativa é obtida com artifícios do discurso com os quais os individualmente fracos como Sócrates, louvando-se uns aos outros em sua justiça e equidade e solidarizando-se em sua fraqueza individual, colocam-se de acordo em grande número para aniquilar uma minoria oligárquica, inimiga da igualdade. 

Em perspectiva, Platão, o mestre fundador do pensamento político, apesar de em Górgias aparentemente fazer seu querido personagem Sócrates defender a verdade filosófica e a maioria injustiçada, este personagem pode ser visto, com o apoio das ciências de hoje, como alguém que compete operando com cálculo preciso o discurso que lhe trará o maior número de adesões em seu confronto pessoal com aristocratas individualmente mais poderosos. A etologia, a primatologia, a arqueologia cognitiva e outras novas áreas de conhecimento estão referendando Nietzsche e nos revelando que o discurso socrático funciona há milênios como um poderosíssimo discurso altruísta de submissão do indivíduo ao todo, o que o torna o esforço comunicativo, o conteúdo discursivo mais persuasivo entre iguais em uma democracia, o mais apto a vencer em um quadro natural altamente competitivo e no qual não há campeões da justiça, verdades filosóficas políticas, bons ou maus em si mesmos, há ganhadores e perdedores, persuasores e persuadidos, na luta comunicativa entre os homens.

Depois que Karl Marx esclareceu como o uso competitivo da força entre os homens, exercido através dos tempos com diferentes configurações sangrentas, hoje se materializa nas sociedades de mercado com desigual propriedade e herança familiar dos meios de produção e opera silenciosamente pela apropriação da mais-valia nas trocas econômicas, Nietzsche desvendou que todos os discursos, incluindo os arrebatadores discursos de Marx ou de Sócrates, também operam em igual lógica competitiva em um quadro natural de luta comunicativa que entre nós chamamos de Política. A única forma diminuir o uso da força, sob quaisquer aparências, mesmo que continuemos competindo entre nós com outro tipo de arma, o discurso. 

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Lúcio Nassaro concluiu bacharelado e mestrado em Filosofia Política e Ética pela USP e, depois de um ano em Paris com financiamento da CAPES, concluiu seu doutorado na mesma universidade tratando da obra do mestre retórico Erasmo de Rotterdam. Atualmente é Coronel da Reserva da PMESP e prepara seu pós-doutorado refletindo sobre Friedrich Nietzsche na história da Retórica e seu impacto nos estudos para a Inteligência Artificial.

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