Tecnologia entra na batalha para combater a corrupção

A corrupção aparece, pela primeira vez, como a principal preocupação dos brasileiros. De acordo com pesquisa da Confederação Nacional da Indústria, 65% da população consideram a corrupção o pior problema do país, a frente de questões como a violência, a saúde e o desemprego, por exemplo, que já ocuparam o topo dessa lista. A crise econômica e as cifras bilionárias de dinheiro público desviado em atos sistemáticos de corrupção sob investigação da Polícia Federal – como a Operação Lava-Jato, levaram o tema para o centro das conversas na mesa do bar, na reunião de amigos, no almoço de domingo.

Entre a perplexidade e a indignação, há quem prefira tomar a iniciativa na tentativa de ajudar a reverter esse quadro. Um exemplo é a Operação Serenata de Amor, que usa a inteligência artificial para auditar gastos de parlamentares e identificar probabilidade de ilegalidade.

O sistema – um robô virtual que recebeu o nome de Rosie, em alusão ao robô do desenho animado Os Jetsons –  foi desenvolvido por um grupo de jovens, liderado pelo cientista de dados Irio Musskopf, de 23 anos. O trabalho em uma empresa sediada em São Francisco (EUA) lhe permitiu entender como o dinheiro se move nas instituições públicas. Já um curso feito em Berlim (Alemanha) despertou para a ideia do desenvolvimento do software.

Começou a trabalhar a noite e nos fins de semana. Logo convidou alguns amigos a participar. Como não tinham dinheiro para o projeto, optaram pelo financiamento coletivo. Em pouco tempo conseguiram arrecadar R$ 80 mil, o suficiente para dois meses de trabalho. Nesse período, o grupo analisou as despesas dos 513 deputados federais reembolsadas pela Cota para Exercício da Atividade Parlamentar (CEAP).

De acordo com a legislação vigente, cada deputado tem direito a uma cota que varia de R$ 30 mil a R$ 44 mil, dependendo da unidade da federação que o parlamentar representa, para reembolso de gastos destinados ao custeio da atividade, como passagens aéreas, telefonia, serviços postais, alimentação ao parlamentar, hospedagem, locomoção, combustível, entre outros. Ao todo, esses gastos somam R$ 128 milhões ao ano.

Os reembolsos feitos aos parlamentares estão disponíveis no site da Câmara Federal, assim, Rosie pode realizar seu trabalho de análise.

O robô virtual consegue saber, por exemplo, quando um gasto com alimentação foi feito artificialmente (ou seja, utilizando notas frias); por terceiros; foge completamente aos padrões de notas de refeições; está acima da média de gastos em alimentação de um parlamentar; ou refeições feitas em cidades distantes em um período de tempo muito curto.

Irio Musskopf ressalta que a inteligência artificial é um importante instrumento para auxiliar o ser humano em tarefas complexas como essa. Ele lembra que, diariamente, a equipe responsável pelo reembolso de despesas dos deputados recebe um grande volume de pedidos, o que torna inviável a verificação de detalhes com a precisão alcançada pelo robô virtual Rosie. O mesmo acontece com os Tribunais de Contas, que não dispõem de pessoal para verificar cada gasto de uma instituição.

Em apenas dois meses de trabalho, Rosie identificou mais de 3.000 situações suspeitas, totalizando cerca de R$ 1.000.000,00. Entre as anomalias, o robô encontrou um sanduiche que custou R$ 220,00; um parlamentar que fez 13 refeições no mesmo dia; uma refeição no valor de R$ 6.205,00; um parlamentar que fez refeições em quatro Estados diferentes no mesmo dia, entre outras.

Depois que Rosie fez seu trabalho, o grupo se reuniu e decidiu auditar cada uma das suspeitas do robô para, só então, apresentar as denúncias à Câmara Federal. Eles auditaram 971 casos, que geraram 587 denúncias, envolvendo 216 deputados e totalizando mais de R$ 378.000,00 em reembolsos contestados.

Alguns parlamentares reconheceram a falha e devolveram o dinheiro. Ao todo, 62 denúncias foram respondidas, das quais, 36 geraram o ressarcimento de R$ 3.253,25 aos cofres públicos. A maioria, porém, não se manifestou: 89% das denúncias ainda aguardam respostas. O grupo publicou no site da Operação Serenata de Amor as duas listas: a das devoluções, indicando o número de respostas, de devoluções e os valores; e a de quem ainda não se manifestou, com link para a denúncia e o valor envolvido.

Confira a lista completa no site www.serenatadeamor.org, no link “Um mês depois do primeiro mutirão”.

De acordo com Irio, o próximo passo do grupo será enviar as respostas inconclusivas ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas. Já as 525 denúncias sem resposta serão encaminhadas ao Ministério da Transparência.

A Operação Serenata de Amor está longe do fim. Como depende de financiamento coletivo, os integrantes têm realizado eventos para apresentar os resultados obtidos até agora.

Rosie deve prosseguir em seu trabalho de avaliar os gastos pessoais dos deputados federais e, num futuro próximo, deve chegar também ao Senado. As pesquisas para isso já começaram.

Irio ressalta que tudo o que foi desenvolvido até agora na Operação Serenata de Amor está em código aberto, ou seja, qualquer pessoa que entenda de código e tenha acesso a dados de gastos de pessoas públicas consegue reproduzir e adaptar o sistema para analisar e identificar anomalias.

Toblerone X Serenata de Amor

Em 1995, a então vice-primeira ministra da Suécia, Mona Sahlin, teve de renunciar ao cargo porque fez compras pessoais utilizando o cartão de crédito do governo. Ao todo, ela gastou o equivalente a cerca de R$ 18.000,00 com objetos pessoais (como roupas, fraldas e cigarros) e duas barras de chocolate Toblerone, no escândalo que ficou conhecido como “Tobleroneaffären” ou “Caso Toblerone”.

Quando o caso veio à tona na imprensa, Mona Sahlin era considerada favorita para as eleições do ano seguinte para primeira-ministra. No dia seguinte à notícia, foi veiculada uma pesquisa na mídia sueca dando conta que 66% da população já a consideravam “imprópria” como primeira-ministra.

Mesmo tendo devolvido o dinheiro e sendo credora do governo, já que devolveu o valor acrescido do equivalente a cerca de R$ 5.000, Mona Sahlin perdeu o mandato. Foram necessários muitos anos para que a população a redimisse e ela pudesse voltar à cena política.

Esse foi um dos últimos escândalos de corrupção de que a Suécia teve notícia. Considerado um dos países menos corruptos do mundo, a Suécia foi a 4ª colocada no ranking da ONG Transparência Internacional em 2016. O Brasil aparece na 79ª posição. (www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2016)

Quando Irio Musskopf e seu grupo decidiram criar um sistema que pudesse ajudar a reduzir os índices de corrupção no Brasil, lembraram do Caso Toblerone. “Adaptamos o nome ao Brasil. Queremos ser capazes de chegar ao detalhe, de detectar se uma pessoa pública comprou um bombom indevidamente”, comenta Irio.

Ele chama a atenção para o fato de que a corrupção começa aos poucos. A pessoa desvia um pequeno valor – irrisório se comparado aos R$ 100 milhões gastos em 2016 com a cota para o exercício da atividade parlamentar dos deputados federais e senadores. Compra um misto quente, mas pede que a lanchonete emita uma nota fiscal no valor de uma refeição completa. Ninguém percebe. A pessoa, então, repete a irregularidade, mas aumenta o valor. Aos poucos, essa mesma pessoa se vê capaz de desviar milhões de reais. Pior: a maioria dos que se utilizam dessa prática não reconhecem a prática como delito.

Como funciona o financiamento coletivo

O financiamento coletivo funciona como uma espécie de “vaquinha”, na qual pessoas que acreditam num determinado projeto colaboram com recursos financeiros para que ele seja concretizado.

Hoje, com os avanços das plataformas online, o financiamento coletivo se transformou numa alternativa bastante viável para pessoas ou pequenas empresas com grandes ideias e pouco dinheiro. E o beneficiado não é uma pessoa, mas a sociedade.

Foi essa modalidade de financiamento que possibilitou o desenvolvimento do robô virtual Rosie e gerou o questionamento de 971 reembolsos feitos a 216 deputados federais.

Ao longo de pouco mais de três meses, de junho a setembro de 2016, o grupo trabalhou incessantemente para viabilizar a Operação Serenata de Amor. Nesse período, eles apresentaram o projeto, colheram opiniões, adaptaram, detalharam e o colocaram no ar. Ou seja, ao mesmo tempo em que desenvolviam o robô virtual Rosie e seus primeiros passos no combate à corrupção, faziam campanha de arrecadação de recursos. Ao atingirem a meta proposta, R$ 80 mil, foram mais dois meses de trabalho para entregar os resultados.

Agora, o grupo voltou a trabalhar na captação de recursos, além do esforço para expandir o projeto para o Senado Federal.

Se você gostou da iniciativa e quer ajudar, entre no site https://apoia.se/serenata e colabore. São aceitas doações a partir de R$ 5,00.

Já se tem uma grande ideia para ajudar no combate à corrupção, que tal compartilhar conosco?

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